Pão

Bom, aconteceu.

Eu sabia que esse dia ia chegar. Acho que até demorou.

Mas chegou.

Atendente da padaria virou pra mim, passou rapidamente os olhos pelo meu semblante cansado e barbado e disse em alto e.bom tom:

- Quantos pães, SENHOR?

Senhor...

Veja bem, nada contra. E, se você pensar bem, chego aos 44 anos em 2023. Jovem, não sou.

Mas é o peso que "senhor" carrega.

Por exemplo: chamo meu pai de "senhor" e minha mãe de "senhora" - aliás, desde que me entendo por gente eu os chamo assim. Questão de respeito absoluto - respeito absoluto que a moça da padoca não deve a mim em qualquer sentido.

Minha formação católica me colocou em círculos nos quais eu ouvia com frequência "O Senhor está no céu" - referência a Deus Todo-Poderoso (nota do sparring de palavras aqui: sim, pra mim, Deus tem nome e sobrenome, como todos nós - feitos à imagem e semelhança, certo?). Bom é óbvio que a atendente não me considera Deus ou coisa que o valha - são necessários poucos segundos "desfrutando" da minha companhia para não ter qualquer dúvida disso, inclusive.

Será que foi o jeitão de me vestir que denunciou? Sou um tanto inimigo da moda, mas estou de camiseta preta, bermuda esportiva azul, meia preta de caveira e tênis... Não estava vestido com o combo bermuda cargo, camisa e sapatênis, muito menos aquela roupa de missa - aos não-senhores que chegaram até aqui, favor procurar a expressão no Google. Enfim, acho que o outfit não denunciou...

Talvez ela tenha sido ultraeducada comigo. Talvez seja assim com todos os clientes...

Finjo que vou pegar algo na prateleira do lado e fico de olho. É a vez de um senhor (SENHOR, SIM!) de óculos com cordinha, camisa polo COM BOLSO por dentro da bermuda, tênis com meia social, ser atendido.

- E você, quantos pães?

Resignado, suspiro fundo e me dirijo ao caixa.

- Boa tarde, tudo bem com o senhor?

Pro meu azar, o pãozinho do lugar é muito bom.